domingo, novembro 20, 2005

Um artigo mais do que importante - Criando sons: a liberdade perdida - Caderno 2 de 20/11/05

Por vezes, quando escutamos uma gravação, perdemos a noção do que está por trás.

Um ato banal de ouvir uma rádio ou de colocar um CD para tocar, não nos faz perceber o que é o progresso, uma tecnologia. Se pensarmos que o próprio radio tem um pouco mais de um século e que o CD que escutamos no carro ou em casa mal beira os vinte anos, vemos que percorremos uma maratona inteira.

Aspectos que são abordados no artigo abaixo passam, de longe, da nossa capacidade imaginativa.

Hoje, peço sua licença para transcrever o artigo, publicado no Caderno 2, com considerações que nos levam a imaginar como o segmento da música mudou nesse último século.

Neste artigo, além dos aspectos tecnológicos das gravações própriamente ditas, podemos vislumbrar como era difícil o simples escutar de uma música ( sem esquecer da dificuldade em executar uma música, o esforço intelectual e o esforço físico, além de muito talento). Daí a propriedade da abordagem de um tema subjacente, qual seja, a técnica dos estúdios somada à técnica dos intérpretes para, ao fim, chegarmos ao displicente ato de apertarmos um botão e, mágicamente, adentrarmos numa dimensão que nossos antepassados não foram agraciados.

Boa leitura!

Jacques

Criando sons: a liberdade perdida

Estudo mostra como o advento das gravações transformou a técnica dos intérpretes e também nossos ouvidos

Charles Rosen
The New York Review of Books

Antes de 1900, a música era vivenciada em casa, por familiares que tocavam algum instrumento ou cantavam. Nas sociedades ocidentais, mesmo que a maioria dos músicos profissionais fossem homens, a maior parte da música era feita pelas mulheres, de quem se esperava que aprendessem a cozinhar, costurar e tocar piano. Mais excepcionalmente, música poderia ser ouvida em alguns espaços públicos: a sala de concerto, a casa de ópera, a igreja. Já no século 21, tudo mudou. Tanto a música pública como a privada são apresentadas por gravações. Poucas pessoas ainda fazem música em casa. Por causa da diminuição do espaço, é hoje inconveniente ter em casa um piano, uma vez peça indispensável em qualquer moradia.

Longe das grandes cidades, a música feita ao vivo também está desaparecendo. Muitas das pequenas cidades acostumadas a séries próprias de concertos as perderam. Mesmo transmissões, pelo rádio ou TV, de óperas e concertos sinfônicos tem sido amplamente eliminadas. Em casa, hoje, tocamos CDs. Estações de rádio, clássicas ou pop, tocam CDs. E mesmo companhias de balé e produções teatrais preferem gravações à contratação de músicos.

Performing Music in the Age of Recording (Fazendo música na era das gravações), de Robert Phillip, é uma análise brilhante de como este quadro afetou o estilo das interpretações. Sua tese principal é a de que gravações levaram o estilo dos músicos em direção à busca por maior precisão e perfeição, perdendo espontaneidade e calor nas interpretações. Tudo isto é verdadeiro e completamente documentado por Phillip. No entanto, há outras forças em ação nesta mudança de abordagem do estilo musical. Por exemplo, uma conhecida história conta que Arturo Toscanini visitou Giuseppe Verdi para preparar a primeira execução do Stabat Mater. O jovem maestro pediu ao idoso compositor permissão para fazer um leve 'ritardando' (mais lento) em determinada passagem. "Mas você tem que fazer um ritardando aqui", respondeu Verdi. "Mas você não escreveu um", disse Toscanini. E Verdi completou: "Pois você pode imaginar o que os maestros fariam se eu tivesse escrito um..." É óbvio que a liberdade de tempo tão valorizada por Phillip era uma necessidade. Mas é preciso dizer que, muitas vezes, foi abusada, com resultados desastrosos.

Mas uma das mais fascinantes seções do livro de Phillip é sua discussão sobre como os compositores do início do século 20 gravavam ou supervisionavam as gravações de suas próprias peças. Phillip entende que não há uma única resposta para a questão sobre se os compositores realmente aprovavam as interpretações às vezes bastante diferentes do texto original ou se apenas estavam se contentando com o que conseguiam ou ainda se haviam mudado de idéia a respeito de suas obras - como muitas vezes acontecia.

As gravações de Bela Bártok são um caso especial. Ele não foi apenas um grande compositor que ajudou a revolucionar o estilo musical mas também um grande pianista. Phillip, sempre preciso, escreve que "suas interpretações soavam surpreendentemente românticas nas suas liberdades", e contrasta o toque de Bártok para sua própria música com o de pianistas modernos, que a tocam "com um corte mais percussivo, tratando seus tempos e ritmos de modo mais rígido do que o próprio Bártok fazia". É certamente verdade que as interpretações de Bártok para sua música tinham uma elegância relaxada que se perdeu no trabalho dos jovens pianistas que enfrentaram sua música. O fato é que Bártok foi tanto um compositor que ajudou a revolucionar a música do início do século 20 quanto um pianista tradicional das antigas.

Com mudanças radicais de estilo, leva mais de uma década para os intérpretes encontrarem um modo adequado de dar voz ao novo. Podemos rastrear este processo em gravações da música de Stravinski, nas quais o que a princípio soava estranho e pouco convincente mais tarde seria tocado com mais naturalidade e calor. O truque, como sempre, é encontrar uma forma de expressão adequada ao novo. O horror de Stravinski quando ouviu Koussevitzky reger sua Sinfonia para Instrumentos de Sopro, por exemplo, foi causado pela imposição do maestro de clichês da interpretação romântica. Aquilo provocou por décadas o comentário absurdo do compositor de que sua música não era expressiva, uma tentativa de evitar o perigo da expressão irrelevante.

As discrepâncias entre a música e as interpretações de Bártok não podem ser explicadas facilmente: primeiro, ele esperava que sua música fosse tocada livremente e com a graça e o calor que caracterizava seu estilo; segundo, seu próprio treinamento como pianista nem sempre o permitia enfrentar completamente a originalidade de suas concepções como compositor. Os pianistas que o seguiram eram mais acurados, mas não tinham a graciosidade que ele soube trazer para sua própria música. Pianistas mais novos, porém, Andras Schiff em particular, conseguiram tanto recuperar muito da qualidade graciosa de Bártok quanto manter a fidelidade ao texto. Queremos ouvir o que Bártok escreveu ou o que ele tocava? Ambos, se possível, e ao mesmo tempo.

As mudanças na interpretação musical registradas por Phillip são parte de um movimento mais amplo das artes no sentido de jogar fora os clichês dos excessos românticos. Ouvir hoje uma gravação de Sarah Bernhardt entoando Racine pode nos fazer rir. Ainda assim, como na música, a busca por um estilo menos amaneirado de interpretação, um modo mais informal de falar os versos, resultou em uma perda de poesia.

O propósito das gravações mudou radicalmente durante o século 20. A princípio, nos discos de 78 rotações, havia tempo apenas para peças curtas, em sua maioria peças de bis. Projetos mais ambiciosos tiveram, então, início, envolvendo conjunto de peças: as 32 sonatas de Beethoven tocadas por Arthur Schnabel, o primeiro ato da Valquíria com Lotte Lehmann, regida por Bruno Walter. Quando todos os quartetos de Beethoven e todas as sinfonias de Haydn foram colocadas em disco, não era mais uma performance que estava sendo gravada mas um corpo de música. A ênfase mudara. A performance é efêmera; obras perduram. E quando uma gravação pretende ser uma imagem da música e não o retrato de uma interpretação individual, então mesmo excêntricos detalhes tornam-se menos desejáveis. Mas se uma gravação deve ser uma representação adequada da música, ser ouvida não apenas uma vez, mas muitas e muitas, parte desta perda é inevitável e mesmo correta. Por outro lado, o concerto, imperfeito que possa ser, tem compensações que nenhuma gravação pode ter: uma performance competente da introdução do último movimento do Quinteto de Mozart traz lágrimas a meus olhos. Nunca chorei com uma gravação.

Há, porém, gravações suficientes onde a precisão e uma falta sóbria de maneirismos alcançam um estado de graça. Entre elas, o Concerto para Violino de Brahms com Kreisler (regido por Leo Blech e não Barbirolli), a cena final do Crepúsculo dos Deuses com Frieda Leider, Rosa Ponselle e Giovanni Martinelli na última cena de Aida, a interpretação de Toscanini para a Iberia de Debussy. Todos podem fazer suas listas. Talvez a melhor coisa do livro de Phillip seja o modo como nos faz apreciar a herança nos dada pelas gravações, e nos força a reconhecer as limitações de nosso gosto pela compreensão do que já saiu de moda. Ele nos permite estimar o quanto já perdemos em nossas rejeições.

Charles Rosen é autor, entre outros livros, de Piano Notes: The World of the Pianist e de Romanticism and Realism

Transcrito do Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo de 20/11/05

:

Blogger Dalva M. Ferreira said.

Lido. Eu intuia algo sobre as diferentes execuções, assim como sobre os meus diferentes "Nessun Dorma". Falta-me, entretanto, conhecimento suficiente de música para alcançar a extensão do exposto pelo colunista. Daqui a 10 anos, quem sabe?

Obrigada, jacques!

21 novembro, 2005 11:59  
Blogger Asparagus the Firefrorefiddle, the Fiend of the Fell said.

Para escutar-se música há que ter-se ouvidos receptivos e muita aplicação. Conhecimento de música, apesar de não ser secundário, é menos importante do que ousar. Não ter preconceitos e escutar.
A receita é escutar, escutar e escutar...
Depois, dizer sem medo, gostei ou não gostei. A maioria dos que escutam com ouvidos (e mentes) abertos pouco entendem de música.
Pense no que escutou nesse último ano e depois me diga se não tenho razão.
Aliás, pelo que sei, você é das mais aplicadas.
Sou eu quem agradece!

Jacques

23 novembro, 2005 00:09  

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