Especulações soltas a propósito de Don Giovanni ossia Il Dissoluto Punito
O que dizer da Mãe de Todas as óperas?
Don Giovanni, ossia Il Dissoluto Punito constitui o ponto alto da criação lírica mozartiana, tendo resultado de uma das mais célebres e profícuas colaborações, no mundo da criação operística.
Juntamente com Le Nozze di Figaro, ossia La Pazza Giornata (O Casamento de Figaro) e Così Fan Tutte, ossia La Scuola degli Amanti (Assim Fazem Todas), Don Giovanni forma a designada Trilogia Mozart / Da Ponte.
Lorenzo Da Ponte concebeu os libretos destas três óperas, que foram, posteriormente, musicados por Wolfgang A. Mozart.
Muito se tem dito e escrito a respeito desta famigerada trilogia, em particular da ópera Don Giovanni, que por inúmeros melómanos é considerada a mãe de todas as óperas. São inúmeros os argumentos aduzidos neste sentido: qualidade do libreto, riqueza e beleza melódica, expressividade das personagens, etc.
Pela parte que me toca, a ópera fascina-me, a um nível imediato, pela harmonia reinante: trata-se de um dramma giocoso, onde se mesclam, de forma espantosamente equilibrada, drama, ironia e lirismo. Não conheço outra criação lírica onde coexista tamanha disparidade de géneros, onde a nobreza mais eloquente, a espontaneidade e singeleza plebeias se fundam!
O (riquíssimo) universo psicológico mozartiano, efectivamente, prima pela prolixidade de expressões: da riqueza maníaca / buffa (Papageno), à mais sincera vivência depressiva (Condessa), passando pela esplendorosa arrogância narcísica (Conde e Don Giovanni) e pelo masoquismo explícito (Donna Elvira); um verdadeiro manual ilustrado de psicopatologia, diria eu!
Em meu entender, esta ópera constitui o paradigma da harmonia do modelo estético clássica, dada a versatilidade e equilíbrio a que aludi.
A outro nível, Don Giovanni toca-me pela densidade psicológica das personagens que compõem a trama.
Neste ponto específico, a genial caracterização mozartiana – e de Da Ponte, bem entendido – é absolutamente ímpar, de uma incomensurável profundidade, comparada, por exemplo, com os perfis das figuras da ópera de Handel, para não mencionar as figuras verdianas, invariavelmente nobres e melancólicas, bem ao jeito romântico monolítico...
A personagem principal – pelo menos a que dá nome à criação -, Don Giovanni, constitui um modelo do funcionamento das personalidades narcísicas: egoísmo, orgulho, desprezo, triunfalismo, auto-valorização, etc. Curiosa é a circunstância de, ainda nos nossos dias, depararmos com clones desta figura na imprensa e blogosfera portuguesas (e bem assim no universo brasileiro e mundial, estou certo!): figuras altaneiras, senhores absolutos da verdade, arrogantes, com um (mais ou menos) camuflado desprezo por (quase) tudo o que produzem os vulgares e terrenos mortais...
Espantosamente actual, esta caracterização mozartiana, acrescentaria...
Obviamente que a caracterização desta personagem encerra uma dimensão caricatural, mas, em boa verdade, mutatis mutandi, o desrespeito pelo outro e o (aparente) fascínio pelo próprio constituem o núcleo fundamental do (dis)funcionamento de Don Giovanni: na ópera, as demais figuras – sem excepção - são vistas pelo protagonista como meros instrumentos de satisfação pessoal. Donna Anna, Donna Elvira e Zerlina são meros números, que se acrescentam a um imenso catálogo, que mais não é do que a prova material de uma virilidade omnipotente.
Don Giovanni, na minha opinião – pouco original, presumo -, contem ainda, mais do que qualquer uma das demais produções líricas, resultantes da colaboração com Da Ponte, uma inequívoca referência moral, bem expressa no subtítulo Il Dissoluto Punito.
Se é verdade que n´As Bodas faz-se a apologia da inteligência e sagacidade – que triunfam sobre a linhagem nobre – e em Così, Mozart apregoa a volatilidade de um moralismo sexual caduco - radicado na monogamia feminina -, em Don Giovanni, o mestre de Salzburgo, explicitamente, alude à primazia do Super-Eu - instância moral que todos construímos, a partir do paterno, espécie de juiz interno, que governa as nossas acções. Recordo que a obra foi estreada no ano da morte do pai, Leopold Mozart...
Há algo de inexorável na natureza humana, a que esta ópera alude: a punição, o castigo – fruto da acção do dito Super-Eu – orientam a conduta do homem, punindo com veemência o comportamento dissoluto.
A moral, a educação e a ética cruzam-se, neste espaço...
Continuaria, de bom grado, a dissertar sobre esta magnífica criação lírica, não fora a falta de tempo...
Com estas breves palavras, espero, com sinceridade, ter aguçado o apetite dos leitores para se lançarem na aventura do conhecimento da genial lírica mozartiana!
Despeço-me, recomendando uma soberba interpretação de Don Giovanni, a que fiz referência no meu blog, em tempos idos:
« Don Giovanni, Muti e a gloria americana »
(EMI 575 535 2)
Ricardo Muti, maestro italiano recentemente caído em desgraça, ex-Senhor absoluto do alla Scala, legou à posteridade, em inícios da década de noventa, um dos mais esplendorosos Don Giovanni que alguma vez escutei !
Confesso que parti para esta audição com inúmeras reservas.
Sempre apreciei o labor de Muti em territórios verdiano e verista.
No que a Mozart concerne, nunca me convencera, apesar da elevada reputação de que goza a sua leitura de Le Nozze di Figaro (EMI).
Quando Ricardo Muti empreendeu esta hercúlea gravação, a história contava já com centenas de outras interpretações, algumas delas absolutamente incontornáveis para qualquer Mozartiano - Giulini´59, Krips´58, Mitropoulos´56, Busch´36 e Haitink´84, entre inúmeras outras.
Afinal, o que tem de tão marcante e destacado a presente interpretação ?
As virtudes desta realização são diversíssimas, começando pela direcção de Muti, de entre as mais minuciosas, disciplinadas e meticulosas que conheço.
Tecnicamente, o desempenho orquestral é primoroso !
Apesar de algo convencional nos tempi, o maestro italiano imprime um ritmo arrojado aos recitativos, que surpreendem pela ousadia; a declamação está sujeita a um débito inusitado, por vezes muito surpreendente !
A mestria da direcção de Ricardo Muti observa-se, ainda, no esmero e cuidado de que é alvo o acento italiano dos intérpretes, provavelmente um dos mais abertos, bem articulados e fieis à tradição disciplinada de outrora ! Um regalo...
Vocalmente, o mérito desta interpretação radica no esplendor de quatro cantores americanos, absolutamente divinos: Ramey, Shimell Vaness e Studer.
Samuel Ramey - que nos anos oitenta apenas tinha como rival, no papel titular, Thomas Allen -, pela primeira vez, encarna o servo do vil Don Giovanni.
Na passada temporada, com 63 anos bem vividos e cantados, no Met, regressou a Leporello, se a memória não me trai...
O que dizer deste Monstro?
O timbre é de uma beleza singular, viril, audacioso e elegantíssimo - porventura em demasia, dado a natureza da personagem interpretada, em tudo alheia a estas qualidades !
Creio que a composição interpretativa deveria assentar, primordialmente, nas dimensões corrosiva e irónica da personagem, traços que, em meu entender, constituem o essencial de Leporello.
O facto de Ramey ter interpretado centenas de vezes o papel titular da ópera - identificando-se com ele em absoluto - está bem patente nesta encarnação. Trata-se, seguramente, do mais nobre dos servos de Don Giovanni com que conta a discografia.
Muti propôs a interpretação do papel titular da ópera a William Shimell, barítono pouco apreciado pela editoras discográficas.
Shimell oferece-nos uma caracterização quase perfeita de Don Giovanni, não fora a ausência de linhagem da interpretação.
Predominantemente mais perverso do que narcísico, insistindo no carácter bruto, vil e rasca, numa linha claramente maniforme, o intérprete renega as facetas aristocrática, subtil e nobre desta figura da ópera, facetas essas essenciais do Burlador de Sevilha !
Dir-se-ia que fez escola, pois Terfel, na sua fabulosa interpretação de Don Giovanni, insiste, igualmente, no lado mais hedionda e obscuro desta mesma figura...
Um servo nobre e um amo rasca: será casual esta inversão de atributos ou mais um golpe de génio de Muti ?
A Donna Elvira de Caroll Vaness levou-me à loucura... Tive vontade de a consolar !
Outrora gloriosa Donna Anna - sob a direcção de Haitink (EMI´1984), nomeadamente -, Vaness transborda de latinidade. O ardor e sangue quente desta Elvira são tremendos. Dela brotam, a rodos, ciúme, ternura, dor, ódio e rancor. De uma humanidade plena !
Nos antípodas da mítica Donna Elvira de Schwarzkopf, Caroll Vaness entra para a história com esta caracterização, soberbamente apoiada numa voz, técnica e emissão de antologia.
Cheryl Studer é uma das cantoras fétiche de Muti. Ao longo da curta mas gloriosa carreira da soprano americana, o maestro propôs-lhe diversíssimos papeis - Elena (I Vespri), Odabella (Attila), Donna Anna, para não mencionar os wagnerianos e straussianos, em meu entender, aqueles em que Studer mais brilhou.
Era uma intérprete de mão cheia, vocalmente luminosa e tremenda em cena. Por ela nutro uma admiração imensa...
Hélas, a pressão das editoras e de maestro menos escrupulosos associada ao deslumbramento e omnipotência da intérprete materializaram-se num declínio vocal precoce.
Na presente gravação, Cheryl Studer propõe-nos uma original Donna Anna.
A personagem interpretada, assente numa vocalização intensa e luminosa, está inexoravelmente presa à ansiedade depressiva, vítima que é de um luto inelaborável.
De forma magistral, Studer subordina todas as demais facetas da órfã do Comendador à primazia depressiva. Não conheço outra igual !
No que se refere aos restantes intérpretes, pouco há a acrescentar.
De Carolis - o último Don Giovanni que passou pelo São Carlos, sem deixar saudades - compõe um Masetto vocalmente muito correcto e sólido, em termos interpretativos; o mesmo não se pode dizer da Zerlina de Mentzer !
À excepção de Berganza e Bartoli, não há mezzo que encarne Zerlina com graça ! Soam sempre a falso ! Mentzer não é excepção. Além de uma voz feia, a interpretação é paupérrima. Vale-lhe uma técnica rigorosa e cuidada, enfim.
Lopardo - destacado belcantista -, não é um mozartiano, em definitivo !
Revelando-se exímio nas vocalizações de Il Mio Tesoro - ária que canta soberbamente -, Franck Lopardo peca pela quase ausência de dotes dramáticos.
O Baixo-barítono Jan-Hendrik Rootering compõe um Commendatore algo parco em termos dramáticos. Não creio ter assimilado, em pleno, a dimensão trágica da personagem, que apenas episodicamente amedronta o ouvinte...
Para terminar, sem hesitar um segundo, diria tratar-se do Don Giovanni da era DDD, ainda mais bem conseguido do que o de Haitink (EMI).
Pautando-se pelo rigor, tanto vocal, como instrumental, esta leitura afirma-se pela técnica, primorosa e praticamente infalível. Não há o mais discreto deslize, à excepção das fragilidades interpretativas mencionadas.
Este é, acreditem, um valor mais do que seguro da minha ópera favorita, que conheço quase de cor. Para a posteridade !
Nota: a EMI retirou do mercado a edição original desta interpretação. A mesma figura, agora, numa compilação (mid-price) subordinada à trilogia Da Ponte / Mozart, cuja referência se encontra sob a foto deste post.»
A todos, os meus cumprimentos!
Nosso autor, um expert das óperas, acedeu, para a minha alegria, escrever sobre a ópera que mais o fascina, a julgar por tudo que já trocamos de correspondências. Não há como retribuir a essa gentileza a não ser recomendando uma ida ao seu blog e deliciar-se com a prosa de nosso patrício.
Hoje, eu fico na coxia e deixo o palco em muito boas mãos. Amigo João, meus aplausos sinceros!
Jacques
PS: O post anterior está escrito em galego, dialeto falado na região da Galicia, Espanha. O site de origem é o da Orquestra Sinfónica da Galicia / Festival Mozart 2005.
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Fantástico, Jacques! Muito bem elaborado, nota mil! Esse mundo é admirável!
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