quarta-feira, outubro 19, 2005

Carlos Gomes -Um pioneiro (quase) esquecido

Placido Domingo no papel título de Peri, em Bonn 1994

Por vezes, nos deparamos com artigos que são fruto de uma profunda vivência com o assunto que nos interessa em nossa coluna.

O presente artigo, publicado num forum de discussão de música clássica, o link segue abaixo, é um apanhado muito interessante sobre Carlos Gomes.

Ao invés de tentar, com muito menos conhecimento de causa, transmitir o que foi a vida de um personagem polêmico, como foi o nosso querido Carlos Gomes, opto pela transcrição e registro do artigo de um competente estudioso da obra e do homem, por Marcus Góes.

É lógico que o tópico não se esgota com as informações valiosas que alí estão inseridas.Vale, no entanto, para incentivar a nossa curiosidade e respeito pelo autor d'Il Guarany.

Jacques


http://www.allegrobr.com/forum/topico.php?id=1489
5 nono;99952
10/01/2003 - 09h52
Caríssimos, (...) Marcus Góes, é um dos maiores conhecedores da vida e obra de Carlos Gomes. Tomo a liberdade de transcrever seu belíssimo texto, escrito quando da última apresentação de "O Guarany" no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa.

Carlos Gomes - Um pioneiro (quase) esquecido

António Carlos Gomes (Campinas, 11 de Julho de 1836; Belém do Pará 16 de Setembro de 1896) foi o compositor de óperas italianas mais representado no Teatro alla Scala, de Milão, depois de Verdi, na década de 1870 a 1879, período decisivo na transição entre o "velho" de II Barbiere, Norma, Rigoletto e o "novo" da "giovane scuola" de Mascagni e Puccini, num mundo musical posto em ebulição o pela tonalidade messiânica e agressiva da "scapigliatura" milanesa, da qual Arrigo Boito era o sumo-Sacerdote. Depois da fragorosa queda do Mefistofele, de Boito, estrepitosamente vaiado no Scala em 1868, com um Verdi que, apesar do extraordinário (e merecido) sucesso universal das suas óperas, não se renovava e que por isso mesmo já não era o prolífico produtor de duas ou três óperas por ano, o melodrama italiano não tinha mais nenhum compositor qualificado para o pesadíssimo encargo de dar prosseguimento e desenvolvimento a forma de arte mais popular na ltália dos tempos seguintes ao "Risorgimento". Nem Franco Faccio com os seus I Profighi Fiamminghi, de 1863, nem Emilio Usiglio com as suas Le Educande di Sorrento de 1868, nem Errico Petlella com os seus I Promessi Sposi de 1869, nem Filippo Malchetti com o seu Ruy Blas de 1869, nem um Amilcare Ponchielli que, atá àquele momento, habitava na província e que não tinha dado ao teatro lírico italiano nem uma só demonstração de verdadeiro talento, nem uma centena de compositores italianos e estrangeiros se mostravam capazes de ser um novo Verdi, ou de ao menos criar algo que fosse ao mesmo tempo novo e do agrado popular.

A jovem "intelligentzia" italiana falava em "lavar o altar da arte, sujo como uma parede de lupanar", e berrava exigindo qualquer coisa de novo e diferente para o melodrama, os intelectuais e certas vozes na imprensa pediam uma relação mais lógica entre palavra e música, entre música e ação dramática, exigindo o abandono das velhas formas gastas de números fechados (recitativo, ária, cabaletta), estimulando o uso de um maior e mais expressivo cromatismo, o emprego de novos ritmos e harmonias. Foi exactamente na fase mais aguda desse período, em 1864, quando Boito faz publicar no Figaro aquelas referências a lavagens e lupanares, que o desconhecido brasileiro Carlos Gomes chega a Milão, a fim de se aperfeiçoar como compositor, vindo do seu longínquo Brasil.

Não podia ser mais propício o momento para um jovem de 27 anos, em busca de fama e de sucesso, aquele da chegada de Gomes a Milão. Começa logo por se "aperfeiçoar" com Lauro Rossi (o verbo vem entre aspas porque Gomes já era compositor experiente quando chegou a Milão, com várias missas, cantatas e duas óperas de grande calibre no seu activo), recebendo aulas particulares no Conservatório de Milão, não como aluno regular, que a idade já não lhe permitia tal condição, mas como "compositor em aperfeiçoamento". Extraordinariamente capacitado e hábil como compositor faz-se logo notar, no que era ajudado por singular simpatia pessoal, por óptima aparência, pelo bronzeado da pele e pelo exotismo absolutamente único das suas atitudes. Conta-se que, nessa época, como não falasse naturalmente o italiano, andava pelas ruas com um dicionário, e que num restaurante ordenou ao estupefacto garçon um prato de "idioma" com batatas... Gomes havia sido uma espécie de "faz-tudo" da ópera Nacional, entidade que existiu no Rio de Janeiro de 1857 a 1863, e que inicialmente tinha como objectivo principal a encenação de óperas em língua portuguesa. Foi ensaiador ao piano, arranjador e adaptador de partituras, director de orquestra, afinador de instrumentos, arquivista, compositor. A tudo isso se somava o facto de ter aprendido teoria musical e a tocar vários instrumentos com seu pai, Manuel José Gomes (1792–1868), maestro de Banda que percorria o interior da província de São Paulo. Quando chegou a Milão, já sabia tudo de música, e esse foi o seu primeiro grande trunfo para se tomar conhecido. Já em 1866 compõe canções que vêm a ser editadas por uma das editoras mais conhecidas de Milão, a Casa Lucca, que mais tarde viria a publicar as suas primeiras óperas em Itália.

Começa a ser notado no ambiente milanês, e em 1866 reencontra o seu amigo Antonio Scalvini (1834-1881), arrendatário do Teatro Fossati, onde levava a cabo espectáculos de variedades, burletas e vaudevilles. Scalvini tinha em mente realizar uma "revista musical" no gênero do que fazia Offenbach em Paris, nas Bouffes Parisiennes. Sabendo da competência e capacidade de Gomes (que frequentava o Fossati sempre interessado nas soubrettes) Scalvini convida-o a compor a música da "revista", e assim nasce Se Sa Minga, primeira revista musical italiana, criada a 9 de Dezembro de 1866 no Fossati e logo levada a outros teatros de Milão, sob intensos elogios da crítica e geral aclamação do público. Com efeito, a música dessa revista é um prodígio de inspiração e de verve, constituindo-se numa extraordinária paródia ao estilo bem definido de Offenbach, o que vem a estabelecer uma das mais fortes particularidades do modo de compor de Gomes: a inacreditável capacidade de absover estilos e características, combinando-os e ajustando-os a seu bel-prazer, o que pouco mais tarde será "marca registrada" de toda a sua obra. Em 1868 outra "revista" é criada no Teatro Carcano, com menor sucesso. Mas a crítica elogia a música, dizendo-a "boa, porque de Gomes". Conhecido e admirado, esses primeiros sucessos de Gomes em ltália não diminuem a pena que sentia ao ver-se discriminado nos círculos intelectuais da elegante Milão, dos salões e saraus musicais. Chamam-no de "índio", de "selvagem americano", de "preto", acusam-no de não saber andar direito, enfim constróem dele uma imagem negativa, que somente a sua férrea vontade de atingir o sucesso completo poderia destruir.

Foi essa vontade férrea de Gomes, aliada ao seu talento e, principalmente, ao seu modo pessoal de compor, a causa imediata de ter sido uma ópera sua a escolhida como "opera d'obbligo" da temporada de 1869/70 doTeatro alla Scala de Milão, templo maior da arte lírica em todo o mundo, numa época em que se lutava com todas as armas possíveis para se ter uma ópera criada naquele teatro. "Opera d'obbligo", ou seja, uma ópera nova que os empresários da temporada se obrigavam a apresentar.

Essa ópera foi Il Guarany, com libreto original de Antonio Scalvini (contratado por Gomes desde 1865 para tal tarefa), remodelado e totalmente modificado pelo literato e empresário Carlo D'Ormeville (1840-1924). Essa ópera foi o seu maior sucesso de público, e é agora mais uma vez encenada em Lisboa, voltando ao palco do Teatro Nacional de São Carlos depois de 32 anos de ausência.

II Guarany foi estreado no Scala a 19 de Março de 1870, e causou estupefacção. Os intelectuais e quase todos os músicos queriam algo de novo, e ali, de repente, um estrangeiro oriundo de um longínquo e desconhecido país situado a mais de 10.000 quilómetros, tido como um lugar de índios e negros, aparece no palco do Scala com uma ópera que continha, se bem que rudimentarmente, quase tudo por que todos se batiam: maior unidade dramática, maior continuidade do discurso musical, não insistência no uso de números fechados, maior adequação da música à acção sobre o palco, maior adequação da música às palavras, uso mais frequente do cromatismo, emprego de novos ritmos e de harmonias mais ousadas. Para que o leitor melhor entenda, vamos a exemplos práticos.

Em Il Trovatore, de Verdi, ópera que pode servir como uma fotografia do melodrama italiano, o tenor protagonista, numa das cenas, sabendo que a sua própria mãe esta a ser queimada numa tenebrosa fogueira, canta "corro a salvarti" – e permanece no palco, par cerca de dez minutos, espada desembainhada, exibindo os seus dotes vocais, enquanto a pobre mãe esta a ser consumida numa "orrenda pirra". 0 tenor diz que corre a salvar a infeliz mãe, mas permanece em cena sem o fazer por longos minutos. Contra esse anti-teatralismo vociferavam os estetas da música e do teatro daquele tempo. Não se discutia o valor operístico de II Trovatore, jóia eterna da ópera e da música para o palco, nem do Rigoletto ou da Traviata. Mas se o leitor consultar as partituras dessas óperas, verá que a música é "bem comportada", os intervalos são quase todos académicos, o ritmo é muitas vezes primário, as harmonias desenvolvem-se sempre de modo esperado, a acção dramática flui muitas vezes em desacordo com a música (uma ária do RigoIetto tanto se adapta a um libertino duque mantuano como a um jovem guerreiro mexicano, uma ária da Traviata tanto serve para uma cortesã parisiense como para uma alegre donzela a colher flores, e outros que tais.

Carlos Gomes, justamente por ter nascido musicalmente no interior de uma então obscura província do lmpério do Brasil, e por ter absorvido com a máxima transparência todos os tipos de música que se fazia por aquelas regiões, compunha de modo totalmente novo para os ouvidos italianos. Desde menino acostumara-se a reduzir obras de Gluck, de Auber, de Meyerbeer, de Rossini, para que a Banda do pai pudesse executá-las. Se Rossini havia escrito uma partitura com duas flautas, a Banda só tinha uma, se para três trompetes, a banda so tinha uma, se para doze primeiros violinos, a banda só tinha dois, ou não os tinha de todo, Gomes devia copiar a partitura com as devidas restrições e adaptações. Daí até começar a "modificar" a partitura original não faltava muito, e o jovem Carlos Gomes começou a improvisar linhas melódicas, intervalos e harmonias diferentes para a música daqueles compositores, fazendo-a parecer-se muitas vezes com a música brasileira das canções de salão de meados do século XIX, e com a música popular de negros e índios, com seus rítmos e harmonias típicas. A música das canções de salão semi-clássicas do Brasil daquele tempo tinham, por sua vez, muito que ver com as canções de salão e "modas" portuguesas. Assim, quando Gomes compôs II Guarany, essa ópera só poderia ser o resultado de todas essas influências, e só poderia causar, numa Milão em busca de novidades, suprema admiração.

O Brasil de meados do século XIX tinha uma vida musical muito mais desenvolvida do que normalmente imaginam os europeus. Foi esse ambiente musical bem desenvolvido e actuante que gerou Carlos Gomes, o maior exemplo de "transplante cultural" ocorrido na História da Música e o maior compositor do século XIX nascido em solo americano.Torna-se necessário analisá-lo para que bem se compreenda o fenómeno.

Quando Pombal, depois de elevar o Brasil 5 condição de Vice-Reino, em 1762, transfere a capital de São Salvador da Bahia para o Rio de Janeiro no ano seguinte, com a sua peculiar visão económica e política dos factos (o eixo económico da colónia tinha-se tlansferido da cana-de-açucar do Norte para as minas de ouro do Sul), o Brasil começa realmente a ter uma existência como entidade psicológica na mente dos seus habitantes. lmediatamente antes, sob a voraz prodigalidade de D. João V, a colônia era vista tão somente como fonte de riquezas. Com a chegada dos vice-reis, tudo muda.

0 Conde da Cunha, D. Luis de Vasconcellos, o Marquês do Lavradio, todos eficientíssimos e provados administradores, começam a pensar em dotar o Vice-Reino de cidades mais bonitas e arejadas, de arsenais, museus e academias, de hospitais e fortalezas defensivas. Antes, sob o governo-geral de Gomes Freire, Conde de Bobadela, já se notara algum progresso, principalmente em virtude da opulência das minas de ouro e pedras preciosas recém-descobertas. Essa opulência reflectia-se nas igrejas, e consequentemente na música. Ainda no reinado de D. João V ocorre na província de Minas Gerais uma esplendida floração de compositores sacros, que irá desabrochar mais tarde, no último quartel do século XVIII, no movimento musical denominado "Barroco Mineiro", do qual Francisco Lobo de Mesquita, Marcos Coelho Neto e Francisco Gomes da Rocha são os principais compositores. Mestres de Capela portugueses estabelecem-se no Vice-Reino, como André da Silva Gomes na cidade de São Paulo (foi professor do pai de Carlos Gomes). Em 1747 já se tem notícia do funcionamento no Rio de Janeko de uma "Casa da Ópera", dirigida pelo curioso padre Ventura, mulato e corcunda que levava ao palco os melodramas de António José e Obras de ,Metastasio. Pasto das chamas em 1769, essa "Casa da Ópera" foi substituída em 1777 pelo Teatro de Manuel Luís, que funcionou até pouco depois da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808, quando passou a denominar-se Teatro Régio. No período do Vice-Reino nasce no Rio de Janeiro aquele que seria o maior compositor brasileiro da época, o P. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), Sacerdote mulato que deixou vastíssima obra, quase toda sacra, e que pode ser considerado o primeiro elemento da grande tríade de compositores brasileiros – José Maurício, Carlos Gomes e Heitor Villa-Lobos (1887-1959).

Foi no entanto com a vinda do príncipe regente D. João, de sua mãe enferma de cabeça D. Maria I e de toda uma enorme corte portuguesa, em 1808, que o Brasil, e especialmente a sua capital (Rio de Janeiro), passam a ter uma vida musical e teatral muito mais completa e desenvolvida. Com D. João (depois D. João VI), o Rio passou a sede da monarquia portuguesa. Eram necessários teatros, eram necessários a ópera e os espectáculos variados de declamação e mágica. Pala tanto, tornava-se obrigatório edificar um grande teatro. Este seria o Teatro de São João, inaugurado em 1813, e que existe até hoje no mesmo lugar, mas com outro nome e com outro aspecto arquitectónico. No Teatro de São João teve lugar a primeira temporada lírica como tal organizada no Brasil, em 1814, e foram apresentadas pela primeira vez naquele pais as óperas mais célebres do repertório, tais como o Don Giovanni de W. A. Mozart, /I Babiere di Siviglia e várias outras de Rossini, de Marcos Portugal e de Salieri. Antes da chegada da corte portuguesa, já o Rio pudera ouvir óperas de Marcos Portugal e de Cimarosa. Com a presença de D. João e da sua corte, as temporadas ricas intensificaram-se e superaram em número de títulos e de récitas o que se fazia antes em Lisboa. A ópera lírica italiana tornou-se numa verdadeira mania, o que perdurou durante todo o século XIX, quando eram os espetáculos de ópera o verdadeiro e único ponto de encontro das classes dominantes, da alta burguesia, dos artistas e intelectuais. Grandes artistas da música iam ao Brasil, os estrangeiros iam e enamoravam-se do Rio de Janeiro, não mais voltando aos seus países de origem. Assim foi com Gioacchino Giannini, compositor italiano que deu aulas de composição a Carlos Gomes em 1859-60, assim foi com Carlo Bosoni, regente do Teatro La Fenice de Veneza, maestro da Joanna de Flandres, segunda ópera de Gomes, estreada em 1863, assim foi com D. José Amat, cantor e empresário espanhol que fundou a Ópera National em 1857. 0 Rio de Janeiro, em 1863, ano em que Carlos Gomes foi para Milão, contava com vários teatros de ópera, todos activos e frequentados. Os maiores eram o Teatro Provisório, também chamado Teatro Lírico Fluminense, o Teatro de São João com o nome mudado para Teatro São Pedro de Alcântara, o Ginásio Dramático, o Teatro São Januário, e o Alcazar Lyrique, onde se encenavam óperas e operetas francesas. Ao lado desses, outros teatros destinados a espectáculos de "vaudeville" e teatro de prosa.

Para melho explicar, alguns dados estatísticos: em 1863 a temporada de ópera italiana e francesa ofereceu 51 récitas de ópera. Só Un Ballo in Maschera, de Verdi, mereceu onze récitas, II Trovatore oito e Ernani seis. No mesmo ano, a Ópera National oferecia vários espectáculos, destacando-se entre eles as óperas novas intituladas Joanna de Flandres, de Carlos Gomes, e 0 Vagabundo, de Henrique Alves de Mesquita. Esse, em breve esboço, o mundo musical que criou Carlos Gomes. É esse mundo e essa efervescência que explicam 0 fenómeno. Il Guarany insere-se no Romantismo brasileiro como obra capital. Deriva de uma longa e coerente cadeia sucessiva que – começada em 1836 (no Brasil todas as correntes estéticas começavam então com atraso em relação à Europa) com a publicação do livro de poesias Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães –, teve o seu apogeu justamente no que comummente se chama indianismo. A primeira obra de vulto dentro desse movimento do Romantismo literário brasileiro foi "A Confederação dos Tamoios", longo poema em dez cantos do mesmo Gonçalves de Magalhães, publicado em 1856. A maior e mais importante dessas obras foi justamente 0 Guarani romance histórico de José de Alencar, publicado pela primeira vez em folhetins de jomal em 1857, logo depois publicado em livro que teve enorme sucesso e aceitação do público. Todos liam 0 Guarani.

José de Alencar (1829-1877) inspirou-se literariamente em Chateaubriand, que no início do século descrevera em romances a vida heróica dos selvagens da Louisiana, então colónia francesa da América do Norte. 0 romancista francês ampliara, por sua vez, os modelos do "bon sauvage" dos iluministas Montaigne e Rousseau. Alencar fez o que o público brasileiro queria: um romance típico do romantismo europeu – cenários de natureza, luta do bem contra o mal, patriotismo, coragem física e moral, histórias de amor, amor paterno e filial, amor à liberdade – tudo, no entanto, com personagens brasileiras, plasmadas em paisagens brasileiras e tendo como o pano de fundo costumes brasileiros.

Não mais louras donzelas do Reno, não mais heróis saxões, não mais as charnecas de Macbeth, nem as prementes dúvidas de Hamlet, mas sim o Brasil de enormes florestas tropicais e rios de três mil quilómetros, de jaguarés e sacis-pereres, de "verdes mares bravios" e de sol sempre a flamejar nos céus azuis. Carlos Gomes leu o romance de Alencar, e – o que é fundamental para que tenha surgido a ópera – quando já se encontrava em Milão, deparou certa tarde corn um vendedor ambulante de livros que apregoava Il Guarany, storia dei selvaggi del Brasile. Era uma tradução do romance para o italiano, e realmente esta existia, tal era o sucesso do livro de Alencar. Munido da tradução, entusiasmado, apresenta-a a Scalvini, e é então que realmente tem início a gestação da ópera, que Carlos Gomes, no início, pensava levar à cena no Brasil. Depois de longas discussões com o libretista, e depois deter encomendado a D'Ormeville as modificacoes pretendidas, em 1869, achava-se pronta a ópera ou quase, pois Gomes modificava as suas partíturas até meia-hora antes da estréia. 0 maior problema era fazê-la subir ao palco do mais importante teatro de ópera do mundo. Gomes, sentindo-se capaz de tal empreitada, movimenta-se em todas as direcções para que a sua composição fosse a escolhida como ópera nova daquela temporada. Faz publicar em Milão um folheto manuscrito em que comunica a sua intenção de levar II Guarany ao palco do Scala. Procura agentes e empresários, declara-se disposto a assumir os gastos da produção, procura um editor. E aí que aparece outra figura decisiva no nascimento da ópera, o editor Francesco Lucca, o qual, antevendo o sucesso da mesma e acreditando no talento de Gomes se dispõe a editar a partitura e o libreto, adiantando-lhe algum dinheiro para que depois o reembolsasse. Lucca será também o editor da segunda ópera de Gomes composta em Itália, Fosca, estreada no Scala em 1873.

Nao foi difícil convencer o empresário Giuseppe Bonolla, que era o responsável pela gestão da temporada daquele ano, a escolher Il Guarany como a ópera nova da mesma. Bonolla conhecia bem o sucesso financeiro de outra ópera recentemente encenada no Scala – L'Africana, de Meyerbeer, apresentada, nada menos que durante três anos sucessivos (1866,1867 e 1868) naquele Teatro, sempre rodeada de grande entusiasmo e aceitação. Tratava o enredo de L'Africana das aventuras e conquistas de Vasco da Gama, do seu suposto affaire com uma rainha de urn povo selvagem, de tribos e de intrigas urdidas entre luxuriantes cenários tropicais. Numa época de geral e irrestrita atracção do público por terras e povos exóticos, nada podia ser mais exótico que Il Guarany, ainda por cima de autor tão exótico quanto o seu enredo. Quando, no terceiro acto, um cacique índio canibal, seminu e de maça em punho, oferece a uma loura donzela europeia o trono da tribo em troca do seu amor, um frenesim percorreu a plateia, subjugada pelo conteúdo exótico – e erótico – da cena. Carlos Gomes não tinha dinheiro para enfrentar as despesas da produção, mas pediu aos amigos do Brasil, pediu ao imperador Pedro II, pediu ao irmão Juca, que lhe remeteram vultosas somas, e a ópera pode enfim subir ao palco. 0 elenco da primeira récita era de óptima qualidade. 0 tenor protagonista era Guiseppe Villani, que se notabilizara coma excelente intérprete em actuações anteriores no Scala. Conta-se que, instado por Gomes a rapar o bigode que orgulhosamente exibia recusou – e assim II Guarany, na estréia teve um índio "bigodudo" como protagonista... A principal – e única – cantora feminina do elenco foi Marie Sass, soprano belga que se distinguira como criadora em Paris, justamente de L'Africaine de Meyerbeer, no original francês. Gonzales, o vilão da história, foi entregue ao barítono Enrico Storti, bom estilista, e o cacique foi interpretado por Victor Maurel, futuro criador do Otello e do Falstaff de Verdi. Regidas por Eugenio Terziani, foram onze as récitas de estreia da nova ópera. No ano seguinte, em Setembro, II Guarany foi novamente ao palco do Scala, para quinze triunfais récitas, para as quais Gomes compusera uma nova abertura. Conhecida como "protofonia" de II Guarany, assumiu essa peça introdutoria a posição de segundo hino nacional brasileiro, não havendo execução da mesma que, no Brasil, nao seja causa de ovações e vivas de chapéus para o ar... 0 sucesso de Il Guarany foi gigantesco. A crítica milanesa desfez-se em elogios, o público passou a assobiar-lhe as melodias, cantores famosos, como Adelina Patti e Francesco Tamagno, logo se interessaram em cantá-la, teatros e empresários de todo o mundo logo se mostraram interessados em encená-la.

A ópera percorre o mundo inteiro: Rio de Janeiro em 1870, Londres em 1872, Santiago do Chile em 1873, Buenos Aires em 1874, Viena e Estocolmo em 1875, Bruxelas, Barcelona, Varsóvia e Montevideu em 1876, Havana em 1878, S. Petersburgo e Moscovo em 1879, Lisboa e Nice em 1880, Nova lorque em 1884. Em ltália, assume imediatamente a posição de ópera das mais representadas em todas as cidades. Com o advento do chamado Verismo e das óperas dos compositores da "giovane scuola", Puccini, Mascagni e Leoncavallo a frente, quase todas as óperas italianas do período da criação de II Guarany foram aos poucos sendo retiradas do repertório. Somente as óperas de Verdi, La Gioconda, de Ponchielli (1876) e o Mefistofele de Boito, revisto e modificado em 1875, são normalmente encenadas.

No Brasil, é representado normalmente e com frequência. Nos últimos anos, tem ocorrido um cada vez maior interesse pelas óperas de Gomes, tendo sido II Guarany encenado em Bona em 1994 e em Washington e Sófia em 1996. A Fosca subiu ao palco do Festival de Wexford, na lrlanda, em 1998, e foi produzida em Sófia em 1997. Maria Tudor subiu à cena da Ópera National da Bulgaria em 1998. Provavelmente a última vez que Carlos Gomes terá visto o seu Guarany em palco foi em Lisboa, no Teatro Real de São Carlos, em Março de 1895, pouco mais de um ano antes da sua morte. Ainda elegantíssimo, em vistosa casaca negra, peitoril e colarinho alvíssimos a contrastar com a pele bronzeada e os cabelos brancos e longos, Segundo assinala a imprensa, recebeu de D. Carlos I a comenda da Ordem de Sant'Iago, antiquíssima condecoração honorífica portuguesa. A rainha D. Amélia convida-o a compor uma ópera, que se denominaria O Génio do Oriente, na qual fossem celebradas as glórias e conquistas portuguesas, o que se revelaria impossível dado o estado de saúde do compositor.

Mas não seria essa a última visita de Carlos Gomes à capital portuguesa. Em Março de 1896 volta a essa cidade para submeter-se a uma operação cirúrgica, o que acontece sem sucesso. 0 seu mal era de morte. Mesmo doente, recolhe melodias, anotando-as no seu caderno de bolso. A última linha de música que escreveu foi uma pequena melodia recolhida das vendedeiras de peixe de Ovar, cidade portuguesa. Parte, em seguida, para o seu Brasil natal, fazendo escala no Funchal, em Abril de 1896. Foi a última vez que pisou solo português. Carlos Gomes volta agora com a sua música, tão imortal quanto ele.



MARCUS GÓES
Professor, musicólogo e investigador brasileiro residente
em Itália, especialista na obra de Carlos Gomes.
É autor dos livros CarIos Gomes: a "Força Indómita", publicado
no Brasil em 1996, e Carlos Gomes: "Un pioniere alla Scala",
publicado em Itália em 1997.

Texto gentilmente oferecido pelo autor ao Teatro Nacional
de São Carlos, incluindo a tábua biográfica
e argumento. (Direitos reservados)

:

Blogger Dalva M. Ferreira said.

Interessante. Valeu cada parágrafo. É aguardar a audição...

20 outubro, 2005 03:07  

Postar um comentário

<< Home