quarta-feira, agosto 31, 2005

"Je crois entendre encore" - O Pescador de Pérolas (artigo de 28/04/2005)



Pois é, quando pensei que ainda demoraria um tempo para voltar ao nosso já conhecido Georges Bizet, acabo de ler um artigo publicado num programa do New York City Opera, que no sábado dia 9 de Abril encenou a "Carmen" do mesmo Bizet.

Quem me presenteou o programa sabia que eu iria ler de capa a capa. E não errou, li mesmo!

Há por lá um artigo muito bem escrito, por Michel Phillip Davis, Diretor de Cena Residente da California Opera Association, em cujas palavras me apoiei para redigir essas linhas.

Se, por um acaso, pudessemos nos transportar para o Thêàtre Lyrique de Paris, na noite de 30 de Setembro de 1863, estaríamos alí para assistir a première da primeira ópera de um jovem compositor de 24 anos que estava a ponto de testar a paciência da culta platéia, navegando por águas perigosas, desafiando a tradição do mundo da ópera francesa de então.

Georges Bizet, ainda viveria por mais 12 anos e ainda escreveria a sua grande ópera Carmen, que seria reconhecida como sua obra prima. No entanto veio a falecer logo a seguir e não pôde acompanhar o sucesso que granjearia com essa obra.

Os compositores de ópera desta época deveriam seguir muito rigorosamente ao código imposto pela sociedade de então. Havia caprichos, maneirismos, arrogâncias, preconceitos de toda espécie ditadas pelos diretores da Opéra , pelos críticos e pelos espectadores. Havia mais do que isso, havia uma ordem estabelecida. Essa ordem impunha uma censura a toda e qualquer manifestação que viesse a se opor a essa tradição.

Do mais alto funcionário do Governo até o mais simples dos presentes naquela audição, todos sabiam que havia em Paris, óperas que se encaixavam em dois tipos. Ou era uma grand-opéra (ópera muito elaborada e sem dialogos falados) ou era uma opéra-comique, que era uma ópera mais leve, de viéz cômico ou semi-cômico, normalmente com um final feliz e que continha diálogos que eram falados e não cantados.

Naquela época Paris era o centro do mundo, não apenas para os compositores franceses mas para todos os compositores. Rossini, italiano, Meyerbeer, alemão, Wagner, alemão e Verdi, italiano, gravitavam ao redor de Paris. Já falei aqui da Don Carlos de Verdi que na versão em francês foi acrescida de um enorme balé que foi composto especialmente para ser exibida em Paris.

Léon Carvalho, Monsieur Directeur Général do Thêàtre Lyrique, encomendou Le Pêcheurs des Perles ao custo de 100.000 francos, pagos por subsídios governamentais, a Bizet, um jovem promissor, de apenas 24 anos e a Eugène Cormon (pseudônimo de Pierre-Etienne Piestre) e Michel Carré, os libretistas.

O libreto deixou a desejar, Cormon chegou a afirmar, que se soubessem que Bizet era tão bem dotado como compositor, jamais teriam lhe entregue "cet ours infâme" (algo como, " esse urso miserável, infame").

O triângulo central da ópera gira entre dois pescadores de pérolas, Nadir e Zurga, ambos apaixonados por uma casta sacerdotisa, Leila. Tudo isso ambientado em um local longínquo, o Sri Lanka, que era terra conhecida por ninguém (provávelmente) da platéia. E por poucos em Paris, certamente.

A trama era urdida em fatos totalmente equivocados e politicamente incorretos, rituais religiosos incongruentes, juramentos sem sentido, mesmo para aquela sociedade do século XIX, que se intitulava, a mais instruida do mundo.

Mas a música convencia. Já falamos muito aqui da ária "Au fond du temple saint", um dos grandes duetos de toda história da ópera. O dueto tenor-barítono foi um dos preferidos de todos os grandes cantores. Caruso e Ancona, Bjoerling e Merrill, Domingo e Milnes, foram algumas duplas que celebrizaram a ária. Esse tema adeja por toda a ópera e é usada para relembrar a amizade entre Nadir e Zurga, separados e unidos pelo amor à mesma mulher. Quando o tema é ouvido no final da ópera, antes que Zurga faça um último sacrifício e permita que os já amantes, Leila e Nadir, possam fugir juntos, o efeito é de arrepiar.

Outro ponto alto da ópera é a barcarola "Je crois entendre encore", essa ária foi escrita com uma linha melódica que já havia aparecido na Sinfonia em Dó, de 1855 do próprio Bizet. Isso era comum, aproveitar-se de pedaços de obras anteriores ou retrabalhar alguns trechos de outros trabalhos, enfim, era aceitável copiar-se a sí mesmo. Essa ária recapitula e canta a primeira visão de Nadir a Leila e é uma das árias mais sublimes que já foram escritas. Caruso e Alagna estão entre alguns dos cantores que elegeram esta ária como uma de suas favoritas.

A ópera, no entanto, pecava por não se encaixar dentro dos rígidos padrões dos parisienses. Não era uma grand-opéra e muito menos uma opéra-comique. Pecado mortal!

A platéia não reagiu...

O resultado era previsível, Bizet foi execrado. Apesar das qualidades individuais da ópera, Paris ficou estarrecida. A crítica foi impiedosa.

Até quem saiu em defesa de Bizet foi espezinhado. Berlioz, o único crítico que lhe foi favorável, foi vaiado alguns meses depois, no mesmo palco doThêàtre Lyrique, quando apresentou a Segunda Parte de sua titânica Les Troyens. Seu pecado, defender Bizet e reconhecer a qualidade de sua obra, Les Pêcheurs des Perles.

Ninguém mais deu apoio a Bizet. Berlioz, irônicamente, apesar das vaias recebidas, sucedeu a Pescadores de Pérolas e tirou desta, qualquer chance de reapresentação.

Nunca mais Bizet ouviu a sua obra. Ela não mais foi reapresentada nos restantes doze anos de sua curta vida. No entanto, a melodia d´"Au fond du temple saint", foi cantada com um texto denominado "Pie Jesu" em seu funeral em 1875...

Morre Bizet e renasce, póstumamente à sua obra prima, Carmen, para revelar ao mundo a beleza de seu trabalho anterior, Les Pêcheurs des Perles.

Pode-se ouvir a ária "Je crois entendre encore" aqui, (o link não está mais no ar, infelizmente) por exemplo.

Aos que apreciam ler enquanto ouvem a ária, transcrevo abaixo o seu texto:

Je crois entendre encore

Caché sous les palmiers

Sa voix tendre et sonore

Comme un chant de ramiers.

Oh nuit enchanteresse

Divin ravissement

Oh souvenir charmant,

Folle ivresse, doux rêve!



Aux clartés des étoiles

Je crois encor la voir

Entr'ouvrir ses longs voiles

Aux vents tièdes du soir.

Oh nuit enchanteresse

Divin ravissement

Oh souvenir charmant

Folle ivresse, doux rêve!



Charmant Souvenir!

Charmant Souvenir!

Espero que também gostem.

Jacques

:

Anonymous Anônimo said.

Je crois entendre encore: esta área é uma jóia. É pura pastelaria fina auditiva. Descobria-a faz pouco tempo na banda sonora do MatchPoint do Woody Allen, e acabei por ser arrastado para o Pescador de Pérolas, e cada dia no caminho para o trabalho alucino mais um bocadinho...(versão com Barbara Hendricks, John Aler e Gino Quilico;dir.Plasson)

17 maio, 2006 20:23  
Anonymous Anônimo said.

David Gilmour canta Je crois entendre encore.

02 setembro, 2007 21:33  
Anonymous Anônimo said.

A interpretação não lírica de Alison Moyet está maravilhosa.
Está no CD Voice. Dá pra ouvir por aqui:
http://beemp3.com/download.php?file=1673655&song=Je+Crois+Entendre

26 dezembro, 2008 22:17  
Anonymous Anônimo said.

A propósito, a interpretação da Alison Monet para o Lamento de Dido (ato III da ópera "Dido and Aeneas", de Henry Purcell) está também belíssima. Está disponível no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=85ytCrJ_ygI

26 dezembro, 2008 22:33  

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