Lembranças de um Primeiro de Abril
Até movido por leituras por aí, quero transmitir minhas lembranças de um ido 01 de Abril de 1964.
Não que eu tenha noções muito específicas sobre o que se passava naquela época, até porque eu tinha pouco mais de 16 anos. Para todo fim e efeito eu era um moleque como qualquer outro da minha idade.
Ideologias, posicionamentos pessoais e outros que tais eu só adquiriria bem mais tarde. Vivia eu em Vila Mariana, um bairro de classe média na zona Sul de São Paulo. Desde criança eu estudei no Liceu Pasteur, um colégio de boa reputação, com dois cursos diferenciados, o meu, em Português, e o Lycée Pasteur, totalmente diferente, dirigido à comunidade francesa em prédio diferente e com cursos em francês.
Eu pertencia à classe dos brasileiros. Tinha aulas em português, uma educação nos parâmetros franceses (leia-se, muito rígida para os padrões brasileiros), um francês para valer (e que me é muito útil, até hoje) e a cabeça de um adolescente.
Os acontecimentos da véspera, é verdade, a revolução redentora, de 31 de Março, práticamente e na realidade, foi a de 01 de Abril. Se a data não era exatamente uma realidade a idéia era corrigir o calendário e a data histórica , afinal o que é um dia a mais? Ou a menos?
Para todos fins históricos, Elio Gaspari, com muito mais conhecimento de causa e de história já publicou uma série de livros sobre o fato. Falta um para os cinco livros mas isso é detalhe. É uma perspectiva histórica da Redentora que merece nossa atenção. Uma bela leitura!
Antigamente a história que se estudava era até o século XIX. por mais que o programa rezasse por outra cartilha. Acho que os professores não sabiam muito bem o que se passou depois do advento da República. Ou eram do século XIX mesmo.
O meu testemunho é o de um adolescente que nunca se havia ligado às causas políticas. Portanto me atenho a lembranças de infância e não a dados históricos.
O porque estou relatando? É a experiência de um jovem, nunca tinha passado por nada semelhante...
Logo de manhã, a escola suspendeu as aulas. Algo de muito surpreendente pois o Pasteur era tido como uma escola muito rígida e que não abriria mão de aulas por qualquer bobagem.
Achamos ótimo, afinal quando é que teríamos um dia de gazeta patrocinado pela própria escola?
Meia dúzia se reuniu e resolveu ir para casa de um de nossos colegas. Programa? Pingue-pongue, um futebolzinho na praça (eu era perna-de-pau e não era a minha área), pebolim, muito bate-papo e pouco conteúdo, enfim, assuntos de adolescentes, naquela época ainda não haviam nascido os primeiros aborrescentes...
Ligar para casa, porque? Nem tinha telefone público. Ir para casa, nem pensar...
Vai daí que das 8 até a 1 da tarde nem pensamos em ninguém, a não ser nós mesmos. Idade maravilhosa! Não tinhamos nenhuma maldade, nenhuma preocupação...
Não é o caso de citar nomes, mas poderia repetir nome por nome, endereço de onde estávamos e outros que tais...
Uma da tarde e era hora de voltarmos para casa...
Primeira coisa que notei, do outro lado, na rua que morava, havia um posto de gasolina, uma fila que ia do posto até umas quatro quadras abaixo, justo no caminho da minha casa.
Batendo papo, sem nenhuma malícia, íamos cada um para sua casa.
Ao chegar em casa, uma bronca que não esperava. Onde "você" havia se metido? Porque não havia voltado para casa? O que "seu" pai vai dizer? O rádio ligado, apreensão total. O clima das tranmissões era próximo ao funéreo.
A rádio, me lembro bem, era a Rádio Eldorado. Oscilava entre notícias de "última hora" e marchas cívicas. O clima era de cataclisma...
Mal composto das broncas que levei antes do "seu" (meu) pai chegar, chega o meu pai com fisionomia transtornada...
Eu mal tinha entendido o que estava acontecendo e ainda havia a fúria de meu pai a enfrentar...
Não sei o que era pior, uma revolução, ou a fúria paterna... Difícil escolher....
Chego à conclusão que temia mais a fúria paterna.
Aí é que comecei a tomar conhecimento dos acontecimentos, movimentos de tropas, adesões à revolução, discursos de autoridades...
Minha mãe partiu para o mercado, era necessário deixar a casa abastecida, meu pai, naquela fila da gasolina, por horas, para encher o tanque de nossa Rural Willys, tudo era novidade para mim.
Uma revolução! Para mim era novidade, para eles nem tanto, já sabiam o que fazer.
Parecia que o mundo ia acabar. As notícias eram desconexas, era um tal de adesão para cá adesão para lá, fatos comprovados e fatos criados, afirmações e desmentidos, discursos vazios, discursos vãos, parece que morreu um, mais de um, alguns, nenhum, tropas que iam para o Sul, general que disse, coisa e tal e o pobre adolescente (eu) começou a tomar conhecimento de fatos que iriam transformar as vidas de toda uma geração. E além da minha, a dos que estavam por nascer e daqueles que estavam se despedindo.
Eu, que havia começado o dia exaltando o "feriado" inesperado, jamais poderia saber que aquele dia iria mudar totalmente o resto de nossos dias.
Fui para escola como uma criança e, no mesmo dia, iria me transformar num jovem conscientizado por fatos que cairam na cabeça como adagas, nos quais jamais havia pensado e que não poderia dar juízos de valor, que só muito mais tarde, poderia entender e julgar.
Dizer que envelheci anos naquelas poucas horas, seria repetir um "chavão"? Pois foi o que posso analisar hoje. A minha vida e a de toda uma geração havia dado uma guinada. Jamais seríamos os mesmos, jamais ninguém seria igual.
Um dia ainda conto como decorreu meu período que passei na Cidade Universitária, na Poli, depois de 1966, nos anos que vieram a ser conhecidos como os "anos de chumbo"...
E ainda tem um capítulo que vivenciei na Poli, lá na "vetusta" sede do Bom Retiro, cercado de quartéis, ainda que os politécnicos se considerassem e fossem considerados apolíticos. Foi de arrepiar...
Repito, são vivências, nunca participei de movimentos políticos por estar mais preocupado com os estudos do que a política. Alienação? Provavelmente... Sobrevivência? Certamente...
Ainda assim há muita coisa para ser relatada.
Jacques
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