quinta-feira, abril 07, 2005

De Turandot e Turandot...

Olá!

Conforme um de meus primeiros artigos por aqui, recebi uma segunda versão em DVD da ópera Turandot, a última opera de Puccini.

As duas diferem num detalhe, o final. Se me repito, desculpem-me os que já leram. Serei breve.

Puccini trabalhou muito na sua última obra, deixou vários estudos mas tinha dúvidas de como finalizar a trama. Deixou-a inconclusa. O trabalho foi entregue a Alfano, que vinha de um sucesso recente, pelas mãos de Arturo Toscannini que era o maestro que regeria a estréia.

Na primeira noite,Toscannini, especula-se, não tendo gostado do fecho encomendado a Alfano, parou a ópera onde Puccini havia escrito sua última nota, a cena onde Liù se sacrifica por seu amo e amado Calaf. Virou-se para a platéia e disse algo como: -"Aqui Puccini parou de escrever sua ópera!".

Ainda no terreno da especulação, Alfano teria aceitado algumas das sugestões de Toscannini e êste, na noite seguinte, regeu até o final que conhecemos.

No entanto, esse final de Alfano, tendo em vista o exíguo tempo que tivera para compor, e ainda à vista dos diversos esboços deixados e não aproveitados, fizeram com que a Editora Ricordi, editora da obra, tenha encomendado a Berio, outro compositor, um segundo final para a obra.

Ao que li, Berio entregou o novo final em 2001. Em 2002 foi levada à cena esta versão modificada de Berio, que aliás é belíssima.

Não querendo adentrar na discussão de qual final é o melhor, qual seria o mais provável, acho que isso é assunto para pessoas com muito mais competência do que a minha, passo a tecer alguns comentários sobre duas montagens de que possuo os DVDs.

A primeira, Puccini - Turandot at the Forbidden City of Beijing / Mehta, Casolla, Larin, Frittoli, Maggio Musicale Fiorentino (1998).

A segunda, Puccini - Turandot / Gergiev, Schnaut, Tear, Vienna State Opera (2002).

A primeira, gravada na Cidade Proibida de Beijing, numa montagem verdadeiramnte cinematográfica, com figurinos tradicionais, toda uma pesquisa histórica, todo um cuidado em apresentar uma Turandot "comme il faut", o que, diga-se de passagem, traz à cena um realismo que emociona.

A segunda, gravada em Salzburg, Austria, com uma visão totalmente diferente. O figurino foi baseado em homens-máquina. O clima a ser passado é o de como, numa nação sem liberdade os homens passam a agir como máquinas, chegando a ter membros mecânicos, próprios para produzir mas não tendo direito de pensar, transformam-se em autômatos, e como tais agem. São apenas peças de uma engrenagem, são apenas objetos descartáveis, intercambiáveis e sem nenhum valor.

Seus governantes em contrapartida são retratados como seres superiores, a ponto da Turandot, em suas cenas iniciais parecer imensa, eu diria com cerca de 9 metros de altura, que é mais ou menos o comprimento de sua ampla saia. De lá ela dita e comanda seus infelizes pretendentes, aos quais, não resolvendo os três enigmas propostos, são encaminhados ao cadafalso e sumariamente decapitados.

O imperador, sentando num trono, sem mover um músculo, governa despoticamente um povo sofrido e mecânicamente obediente. Para não faltar com a grandiosidade da cena, o sacerdote é outro que sem emoção ou movimentos aparentes completa essa ditadura de poder e de atos. Ouso dizer que o cenário e o figurino são extremamente pertinentes ao enrêdo e valorizam sobremaneira a montagem.

Mais não vou falar porque quero entrar numa parte mais humana do que é o gênero ópera. Recomendo ambas as versões, que divergem nos instantes finais mas comungam com o que há de belo na música. Ambos os finais são possíveis, ambos são válidos, o futuro dirá qual o mais palatável.

O que me chamou a atenção, e não foi surpresa, pois já tinha visto essa diferença em outras óperas que assisti, foi a dicotomia entre os personagens e seus cantores.

Enquanto na primeira Turandot os personagens têm o físico compatível com a idade e com os caracteres de seus papéis, na segunda o que se impôs foi apenas a voz, a música, os caracteres e os cenários.

Na segunda, Turandot, jovem e cruel, é interpretada por uma mulher de "meia" idade, Calaf, o galã que vai tentar resolver os ditos três enigmas, é um robusto senhor com mais de cem quilinhos. Seu pai, cego e teoricamente mais velho que o filho, físicamente é o melhor, mas realmente eu gostaria que ele "fôsse" mais velho. Liù, a meu ver, a heroína de Puccini, representa mal, mais parece uma daquelas caricaturas de um filme de Fellini (que exagero, o meu), pobrezinha.

E apesar de tudo isso, musicalmente, cenograficamente a coisa funciona muito bem.

Tudo isso para dizer que na ópera é possível ambientar-se em épocas diferentes das originais, a parte física dos atores deve ser relevada, a capacidade interpretativa deve ser bem medida.

Não é o caso aqui de dizer, musicalmente, qual Turandot, a ópera, é melhor. O que quiz transmitir é que mesmo onde há discrepâncias físicas o resultado final pode ser muito bom. Ainda que hoje os cantores de ópera, em sua grande maioria, sujeitem-se à ditadura da moda atual, são mais esbeltos, suas vozes são mais o produto de muito estudo e longos ensaios, em detrimento de outras teorias que impunham grande "volume" para cantar.

A grande verdade é que a voz humana é o único instrumento musical que usa o próprio corpo para emitir sons. É diferente de um violino, de um piano, de uma clarineta, que são instrumentos "externos". Se um piano, uma trompa ou o instrumento que for, estraga, das duas uma, ou conserta-se ou substitue-se.

Com os cantores, seu único "instrumento" é a voz. E porisso damos tanto valor a esses instrumentos tão perfeitos quanto sensíveis. São anos e anos de estudos e treinos. Teoria, prática, ensaios, aprimoramento da voz, repertório, enfim, um sacerdócio e uma privação diária.

Não é porque o peso dos anos se traduz na balança ou no espelho que devemos descartar esses "canários". Não é praticamente possível atender todos os requisítos do personagem para que este ou aquele cantor cante aquele específico papel. Seria quase que como se escolher fulano para o papel tal nesta ópera. E fim, pois não há dois caracteres ou personagens iguais.

Apenas para concluir, Wagner, em uma de suas óperas escreveu sua descrição para uma personagem, uma senhora de meia idade, com seus 35 anos, pode? Isso hoje é inconcebível... Nessa idade os cantores ainda estão em processo de aprimoramento.

"Tempus fugit!"

Jacques

:

Postar um comentário

<< Home